quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Volver

Decidi descer do taxi no meio do caminho e ir andando, só por andar, para ter mais tempo para pensar e deixar cair a ficha de tudo aquilo que estava acontecendo. Quando entrei na avenida Ipiranga, o sol já tinha caído tanto que alongara as sombras até deixar quase tudo na escuridão. Buzinas, freios e aceleradores tocavam a sinfonia da impaciência humana. Mas agora falta pouco. Tão estranho voltar, já faz tantos anos que eu fui com ele para aquela cidade cujo nome nem vale a pena lembrar. Quantos invernos faz que o conheci? Quantas noites faz que nos casamos? Quantos copos faz que ele começou a? Quantas crises asmáticas faz que eu já não agüentava mais? E agora, de saco cheio, ventre vazio, voltando sozinha. Quem diria que viver ia dar nisso?
Ao me afastar poucas quadras da avenida, o silêncio já me permitia ouvir meus sapatos mastigando os paralelepípedos. Cheguei. A casa continuava amarela, o jardim ainda tinha o mesmo cheiro de manjericão. Ela abriu a porta assim que toquei a campainha, como quem espera o dia todo por esse momento, ou mais que um dia. Seu rosto pendia das finas sobrancelhas como roupa pendurada no varal. Veio abrir o portão e me deu um longo abraço, longo e indispensável abraço, enquanto o outro vinha me ajudar com as malas. À sua maneira, também me recebeu terno, é claro. Eu é que precisava de um colo que ninguém dá. Mas tudo bem.
A mesa já estava posta. Sim, te acompanho no vinho. Sopa, pãozinho, velhas manias.
Foi tranqüila a viagem?
Foi tudo bem, mãe. E vocês, como estão? E a Flávia?
Ah, tua irmã tá bem. Tu que perdeste o aniversário do teu sobrinho!
Andei perdendo todos os aniversários nos últimos tempos...
E a empresa lá?
A livraria? Faz meses que saí, pai, tu sabes... Saí quando soube que tinha engravidado, em abril foi.
Mas tu já estavas na gerência, não?
Não, pai, estava de vendedora... Nisso não perdi muito. Aqui eu encontro algo igual ou melhor.
Silêncio. Até que minha mãe piscou, porque piscar é uma espécie de vírgula que seus olhos fazem quando querem mudar de assunto.
Uma pena, nós tínhamos ficado tão contentes com a gravidez! Mas o importante agora é a tua saúde. Deixa que a gente vai te cuidar aqui, hoje deixei o teu quarto aberto pra arejar e já coloquei roupa de cama nova. Te trataram bem no hospital?
Sim. Bom, acho que sim, foi tudo muito rápido. Desci da ambulância e logo vieram me avisar que eu tinha perdido. Acho que cheguei tarde demais.
E assim ficam sempre fazendo as perguntas erradas, esperando descobrir qualquer coisa na minha vida que eles não compreendem. Os ponteiros do relógio na parede pareciam cobrar de mim, a cada movimento, aquilo que precisava contar aos meus pais. Sobre parcerias precárias, afetos aflitos, cenas obscenas. Tic, tac.
Tu não queres ligar para o Caio? Avisar que chegou bem...
Eu não tenho mais nada para falar com ele.
Ela se levantou para tirar a mesa, ele continuou ali sentado com aquela cara de peça de xadrez. Não precisa se incomodar, deixa que eu tiro. Mas ela sempre acaba tirando a mesa sozinha mesmo. Pelo menos pôs a louça na máquina, não precisava mais lavar tudo na pia. Fora isso, nada parecia ter mudado. Só constatei que o tempo havia passado quando percebi que meu pai tinha agora o mesmo cheiro do meu avô.
Ela me trouxe um chá sem que eu pedisse, e ficamos mais um pouco na sala. A essa época do ano, o frio ainda servia de pretexto para que as minhas roupas cobrissem os arranhões na nuca, os hematomas nos braços. Quando subi para o meu antigo quarto, dormi depressa, não sei se de cansaço ou se foi para não pensar em mais nada.

Eu tinha tentado aprender a ser humilde, a engolir os nãos que a vida te enfia goela abaixo, a lamber o chão dos palácios. Aprendi a me sentir desprezada-como-um-cão, e tudo bem, acordar, escovar os dentes, tomar café e continuar. Mas hoje realmente parecia tudo bem, ou ao menos que ia ficar.
Liguei o chuveiro e deixei aquela água toda toda cair em cima de mim e levar tudo tudo tudo embora. Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo... Eu olhava para a água que escorria pela minha barriga, aquela criança fugiu antes da hora porque entendeu melhor do que eu que aquilo não era vida, só pode. Eu mesma não a queria neste mundo, confesso. Conheceu socos e empurrões antes de qualquer outra coisa, e depois os gritos e as cadeiras indo ao chão e o por pouco não acorda os vizinhos. Pior do que ter um pai como o Caio, seria ela ter me obrigado a uma vida inteira presa a ele. A coitadinha já ia nascer culpada, de consciência pesada, não pode uma coisa dessas! Não foi culpa minha, mas é verdade que eu preferi que tenha sido assim, não aceito que seja feio dizer isso. Ela só veio para ir embora antes mesmo de vir, para me mostrar que eu podia ir embora também. Ela viu sem ver e sentiu sem dizer toda a humilhação, a raiva e o pranto. E desistiu. Ia ser menina...
Ainda enrolada na toalha, sentei na cama. À minha frente, o espelho na porta do armário me apontou a velha caixa guardada debaixo da minha cama de adolescente. Fotos de antigos amores, bilhetes assinados por outros cheiros, e dali saíam sorrisos desbotados e olhares mornos e abraços já tão distantes. E eu ali, dentro dessa caixa, no meio disso tudo, de um jeito que eu nunca mais tinha me visto. Vi a mim mesma dando uma risada em sépia, minha boca-de-sino se confundindo com as das amigas na volta, minha cintura fina segura pelo braço másculo que a rodeava e beijava meu ombro. Só então me dei conta: fazia tanto tempo que eu não me apaixonava que já sentia o coração entediado, mais parecia um escritório em dia de feriado.
Me encarei no espelho, eu hoje, as marcas da violência, a pele ainda jovem apesar de tudo. Não me importei que a toalha caísse e que eu ficasse ali exposta e úmida, o verso nu e cru à luz do dia seguinte. Me masturbei na frente do espelho com a certeza de que não precisava de mais ninguém.
Encontrei uma bicicleta na garagem e não hesitei em percorrer mais uma vez as pacatas ruas do meu velho Menino Deus, oferecendo os longos cabelos ao ar que meu corpo interrompia e modificava. O sol das 10 horas de um dia de semana me era reconfortante. Manhãs assim têm um não-sei-quê de recomeço que era exatamente o que eu precisava. Fui até a beira do Guaíba e sentei para fumar um cigarro. O vento, sem pressa, dançava com a fumaça, entretanto eu tinha os olhos fixos no azul profundo do céu de setembro. O sol nunca terá dono.

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