sábado, 8 de setembro de 2018

Antropofagia

se eu não posso
devorar teu coração
me deixa ao menos
experimentar a tua saliva
engolir o teu sêmen
misturar o teu suor ao meu
afinal
por todo esse calor
não é isso que chamam
carne de sol?

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

na calada da noite, quando aceitamos caminhar juntos
nossos olhares se cruzaram acidentalmente
e reencontraram a ternura que guardavam
em um abraço que não queria acabar
abriu-se um parênteses no tempo

finalmente
voltar a enxergar o teu amor
mesmo que sem a paixão de outrora
e poder tocá-lo
um amor mais maduro, como nós
um amor que só é bom por não doer

e dormir o sonho do sono dos sonhos
satisfação plena e onírica e crua
como se há muito tempo esperasse por isso
como se isso há muito tempo esperasse por nós

foi uma noite curta
precisamente como poderia ser
com tudo aquilo que perfeitamente deu errado
(como não podia deixar de ser)

então a cidade acorda
lá fora, os carros recomeçam a correr por suas veias
- digo, vias -
que vão se espreguiçando ao raiar do dia
sem embargo,
aqui dentro, nada mudou

naquela manhã de segunda-feira sem pressa
esqueci do açúcar para o teu café
não sei se foi porque eu já tinha perdido o hábito
ou porque tu já tinhas adoçado o meu dia

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Outros jeitos de usar a boca

quando um homem invade
o meu espaço, tempo ou vontade
não é só aquele momento que ele viola
ele viola todos os dias que se seguem
viola minhas noites de sono
o meu sossego
a minha confiança
até nos outros homens
ele viola a todas nós
mas o corpo é meu
e só eu
posso fazer com ele o que quiser
não estou no mundo à sua disposição
só porque sou mulher
e quando eu digo não
não importa os seus impulsos
o pulso é firme
é meu
e diz não
e quando eu digo não
eu não faço isso só por mim
eu faço por todas nós

por mim e por todas nós
repito como um mantra
por mim e por todas nós

domingo, 6 de maio de 2018

Olhando assim de longe
os carros na ponte parecem ir devagar
os aviões decolam vagarosos
as nuvens mal saem do lugar
o sol sobe preguiçosamente
as revoadas de pássaros são lentas
o rio corre de mansinho
o resto nem se movimenta

o trem atropela
o nosso ritmo das manhãs
o trabalho não espera
a felicidade, sim.
o ser humano
é sempre ímpar
nunca será par

nunca será páreo
para outro ser humano
feito à sua imagem e semelhança

mas - quem sabe? -
para algum ser humano
afeito à sua imagem
e dessemelhanças

quarta-feira, 21 de março de 2018

Abismo

Sinto no peito um vazio imenso. Um vazio sufocante, com ânsia de ser preenchido por palavras bonitas, sentimentos profundos e certezas absolutas. Mas nada disso existe agora. Tenho só a tua ausência e a intensa agonia de quem duvida de tudo. Tenho ausências demais. O batimento acelerado do meu coração não me deixa dormir, mas é só o eco da vontade que já existiu um dia, e que hoje não sabe para onde vai. Sinto no peito um vazio imenso como a escuridão da noite, e não sei se o dia vai chegar. Nem mesmo as lágrimas brotam em meu corpo. A vida parece estéril. Preciso me lembrar de onde vinha o desejo de que eu esteja aqui. Às vezes já não sei a diferença entre estar dormindo ou acordada. Não sinto mais nada. Sou o eco de mim. Sinto no peito um imenso vazio.

sábado, 17 de março de 2018

Vou embora hoje. Embora hoje tenha vontade de ficar. Embora saiba que o dia de amanhã aqui poderia ser ainda melhor que o de hoje. Embora vá sentir saudades desse horizonte e de tudo que ele guarda. Embora saia com gana de voltar e com medo de não encontrar essa serenidade em nenhum outro refúgio meu. Embora tenha tentado ficar mais tempo aqui. Embora duvide dos motivos que me fazem voltar para casa por inércia. Hoje, vou embora.

Dia branco

Talvez seja preciso certa maturidade para aprender a amar os dias nublados. Não falo de quando há uma ou outra nuvem cobrindo o sol, mas de quando o céu está convictamente nublado, estático, cor de chumbo, como se as nuvens estivessem soldadas umas às outras, deixando a luz difusa em uma claridade aparentemente sutil mas que machuca os olhos quando saímos de dentro de casa. Talvez só quem tenha passado por uma sucessão de dias chuvosos e tempestades entenda a preciosidade dos dias nublados e a paz que eles me trazem, quando a brisa fresca não é vendaval nem o calor pesado nos tira a urgência de viver. Os dias nublados me dão licença para caminhar devagar, respirar fundo e não exigir muito de mim. Hoje mesmo estava nublado quando acordei, então saí andando por aí, ouvindo o silêncio e enchendo os olhos de mundo. Tudo o que eu preciso em um dia desses é uma sacada com uma vista que eu possa chamar de minha: que se torne rapidamente familiar e aconchegante. Um doce cairia bem, e a boa companhia pode ser a minha própria. E, quando o sol anunciar o seu retorno, é claro que meu peito vai se aquecer tanto e de tal forma que eu vou correr para a praia e mergulhar no mar imenso para festejar toda a cor e o brilho dos dias ensolarados! Mas continuarei sabendo que não há nada mais intenso do que aquele raio de sol que delicadamente resiste e escapa por entre as nuvens de chumbo, solitário como um louco, modificando toda a paisagem e o céu que paira sobre nós. Porque nada há de permanecer sempre igual.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Navegar é preciso

rumo
diz o dicionário
é cada um dos 32 espaços em que se divide a rosa-dos-ventos
ou 
a direção que segue um navio

diferente daqueles cascos enferrujados
do outro lado do muro, no cais do porto
que já não se dirigem a lugar algum
eu
de repente, mudei de rumo

à margem do rio que segue seu curso 
vejo o amanhecer e os armazéns do cais
trilho meu caminho agora nos trilhos do trem
descarrilei

o sol nascendo
o trem partindo
eu partindo no trem
de coração partido
de coração, partindo
a Novo Hamburgo

Novo Hamburgo
um nome que carrega em si
novo rumo
um nome onde cabem também
roubo, ramo, ranho
uva, ombro, hora, ganho
mau agouro
mago, ouro
ogro, bravo, bom
unha, banho, norma, vôo
rabo, bronha, nora, avô
rango, morno, humor, bongô
muro, grua, bar, ruga
vago, órgão, rua 
garoou

Outubro de 2017.