sábado, 13 de outubro de 2012

A peça estava marcada para as 21h exatamente naquele endereço, mas faltavam 5 minutos e a porta do teatro ainda estava fechada. A fila já se estendia longa pela calçada, noite adentro. Um título misterioso nos cartazes da fachada.
Aparecem caminhando nessa direção alguns jovens que claramente não estão ali para assistir a peça. Conforme vão se aproximando desde a esquina, se nota que são muitos, uns vinte talvez. Vêm chutando portas, arranhando carros, abrindo sacos de lixo, ameaçando atirar algumas pedras que levam nas mãos, com gargalhadas histéricas, febris. Não, não parecem drogados - parecem saber muito bem o que fazem...
O público encolhe os ombros, apegando-se cada vez mais à parede externa do teatro. Alguém tenta abrir a porta, alcançar algum funcionário do teatro com a voz, em vão. Essa gangue já está na sua frente, e não parece ter vontade de sair dali tão cedo. Correm os olhos por todos, seus olhares maliciosos, como vampiros sedentos. 
E agora cada um já escolheu sua vítima.
Enquanto se aproximam dos respectivos escolhidos, caminhando devagar e decididos, as mulheres vão desvestindo suas blusas, os homens abrindo suas calças. Intimidam, dizendo coisas que poderiam tanto ser elogios como insultos. Acabam optando claramente pelos insultos. Alguns deixam ver as pedras e facas que empunham. Já estão perto demais, algumas pessoas já foram jogadas ao chão ou pressionadas contra a parede. Deixam claro que ninguém vai escapar do estupro, mas não têm pressa, disfrutando de cada minuto de desespero alheio. Contam em detalhes sádicos o que vão fazer com cada pessoa, e o que suas famílias vão pensar depois. Lágrimas, gritos, gente se afogando no próprio pranto. Medo não se disfarça. 
Mas neste momento parecem determinados: já não sobra mais tempo, agora é a hora. Avançam sobre as vítimas amedrontadas, não há mais o que fazer! Ou não? Ato contínuo, a gangue se detém de repente, e dá alguns passos para trás. Há duas filas paralelas, e completo terror entre elas: de um lado, o público perplexo; do outro, os atores cansados.
“Boa noite! Gostaríamos de agradecer a todos por terem vindo à nossa peça...”

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Guardou a armadura no roupeiro
com as camisas que já não usava mais
abriu a janela
os braços
o peito
deixou a noite entrar
deitou na cama
e dormiu em mim
sonhando do avesso

sábado, 4 de agosto de 2012

Fim de férias

A preguiça de fazer as malas pela milésima vez, uma última e melancólica vista do mar, os lentos relógios do transporte público, as costas ardidas do sol e as picadas de mosquito, a fria paranóia dos aeroportos, a comida sem gosto para enganar o estômago, o céu ao meu lado e nenhuma brisa nos cabelos. Uma coleção de histórias de vida que se cruzam, novas e antigas saudades e a volta para casa. Casa, engraçado, não é todo mundo que pode dizer que tem uma... E não falo dos sem-teto. 
A segunda-feira chegará chicoteando e rindo, delirante, com as surpresas de uma rotina já conhecida. Essa vai te devorar sem que percebas e vai te cuspir de volta quando o verão chegar. É assim. Fujam enquanto podem, todas as vezes que puderem.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

La huella del unicornio


La Habana que conocí, medio siglo después de la Revolución, es la capital de un país de machos y hembras, un lugar que huele a puros, donde el verde desborda. Una ciudad tan calurosa y húmeda que ahora entiendo los olores agrios que describe Pedro Juan Gutiérrez. Camino por sus calles y tengo que mirar adonde piso, mientras pasan por mí wawas, uniformes, gente bonita. En cualquier esquina, veo hombres jugando al dominó (los pequeños juegan al baseball) y, en cada balcón, ropas colgadas secando al sol. Cines en la calle y farmacias a la antigua, edificios y coches estacionados en los años 60. Sus héroes nunca olvidados, y la gente que “habla o come fruta”. Oigo salsa desde algún rincón, y me decepciona su arte, bello pero muy comercial. Los niños pueden sorprenderse al ver por primera vez a un extranjero, uno de estos que vienen desde mucho más allá del Malecón. Y falta helado en la heladería porque la fábrica no abre los domingos, pero la diferencia entre ricos y pobres es mucho más imperceptible que aquella entre CUC y moneda nacional. Con su español más nasal y de consonantes que casi no se escuchan, con su sonrisa mansa (blanco sobre negro como el arroz congrí), Cuba, conseguimos entendernos.

No rastro do unicórnio


A Havana que conheci, meio século depois da Revolução, é a capital de um país de machos y hembras, um lugar com cheiro de charuto, onde o verde transborda. Uma cidade tão quente e úmida que agora entendo os odores azedos que descreve Pedro Juan Gutiérrez. Caminho por suas ruas e preciso olhar por onde piso, enquanto passam por mim guaguas, uniformes, gente bonita. Em qualquer esquina, vejo homens jogando dominó (os pequenos jogam baseball) e, em cada sacada, roupas secando ao sol. Cinemas de rua e farmácias à antiga, edifícios e carros estacionados nos anos 60. Seus heróis sempre lembrados, e um povo que “habla o come fruta”. Ouço salsa tocando em algum lugar, e me decepciono com sua arte, bonita porém tão comercial. As crianças podem se surpreender ao ver pela primeira vez um estrangeiro, desses que vêm de muito além do Malecón. E falta sorvete na sorveteria porque a fábrica não abre no domingo, mas a diferença entre ricos e pobres é muito mais imperceptível que aquela entre CUC e moeda nacional. Com seu espanhol meio fanho de consoantes que quase não se escutam, com seu sorriso manso (branco no preto como arroz congrí), Cuba, conseguimos nos entender.

domingo, 6 de maio de 2012

Breve romance

revirei toda a cama
e não encontrei
teus defeitos

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Flor de jacarandá

primavera
as calçadas roxas
de saudade de ti

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Primeiras impressões

Aí o cheiro de comida nas ruas deixa de parecer enjoativo e passa a dar água na boca, tu já sabe o caminho de casa mesmo borracha e até com os amigos brasileiros fala em espanhol... Aí tu começa a te sentir em casa. As fechaduras são todas de cabeça pra baixo, as privadas quase nunca têm assento, o interruptor de luz sempre fica num lugar sem sentido, mas tudo bem. E as novelas? Não são tão absurdas assim: se tu observa as pessoas à tua volta, elas fazem mesmo um dramalhão mexicano! Tudo se come muito apimentado e com as mãos, e os motoristas não têm idéia de pra quê serve a faixa de pedestres, mas tu percebe que gosta tanto de viver aí... Até porque só tem terremoto quando passa ônibus na frente de casa.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Palavras bêbadas V

Deve ser pesada uma bola de canhão. Mas que leve parece quando decola! E os que assistem de longe tapam os ouvidos, esperando o estrondo final, esperando que não seja o fim. Espera e esperança são mesmo palavras complicadas... Fico na esperançância.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Volver

Decidi descer do taxi no meio do caminho e ir andando, só por andar, para ter mais tempo para pensar e deixar cair a ficha de tudo aquilo que estava acontecendo. Quando entrei na avenida Ipiranga, o sol já tinha caído tanto que alongara as sombras até deixar quase tudo na escuridão. Buzinas, freios e aceleradores tocavam a sinfonia da impaciência humana. Mas agora falta pouco. Tão estranho voltar, já faz tantos anos que eu fui com ele para aquela cidade cujo nome nem vale a pena lembrar. Quantos invernos faz que o conheci? Quantas noites faz que nos casamos? Quantos copos faz que ele começou a? Quantas crises asmáticas faz que eu já não agüentava mais? E agora, de saco cheio, ventre vazio, voltando sozinha. Quem diria que viver ia dar nisso?
Ao me afastar poucas quadras da avenida, o silêncio já me permitia ouvir meus sapatos mastigando os paralelepípedos. Cheguei. A casa continuava amarela, o jardim ainda tinha o mesmo cheiro de manjericão. Ela abriu a porta assim que toquei a campainha, como quem espera o dia todo por esse momento, ou mais que um dia. Seu rosto pendia das finas sobrancelhas como roupa pendurada no varal. Veio abrir o portão e me deu um longo abraço, longo e indispensável abraço, enquanto o outro vinha me ajudar com as malas. À sua maneira, também me recebeu terno, é claro. Eu é que precisava de um colo que ninguém dá. Mas tudo bem.
A mesa já estava posta. Sim, te acompanho no vinho. Sopa, pãozinho, velhas manias.
Foi tranqüila a viagem?
Foi tudo bem, mãe. E vocês, como estão? E a Flávia?
Ah, tua irmã tá bem. Tu que perdeste o aniversário do teu sobrinho!
Andei perdendo todos os aniversários nos últimos tempos...
E a empresa lá?
A livraria? Faz meses que saí, pai, tu sabes... Saí quando soube que tinha engravidado, em abril foi.
Mas tu já estavas na gerência, não?
Não, pai, estava de vendedora... Nisso não perdi muito. Aqui eu encontro algo igual ou melhor.
Silêncio. Até que minha mãe piscou, porque piscar é uma espécie de vírgula que seus olhos fazem quando querem mudar de assunto.
Uma pena, nós tínhamos ficado tão contentes com a gravidez! Mas o importante agora é a tua saúde. Deixa que a gente vai te cuidar aqui, hoje deixei o teu quarto aberto pra arejar e já coloquei roupa de cama nova. Te trataram bem no hospital?
Sim. Bom, acho que sim, foi tudo muito rápido. Desci da ambulância e logo vieram me avisar que eu tinha perdido. Acho que cheguei tarde demais.
E assim ficam sempre fazendo as perguntas erradas, esperando descobrir qualquer coisa na minha vida que eles não compreendem. Os ponteiros do relógio na parede pareciam cobrar de mim, a cada movimento, aquilo que precisava contar aos meus pais. Sobre parcerias precárias, afetos aflitos, cenas obscenas. Tic, tac.
Tu não queres ligar para o Caio? Avisar que chegou bem...
Eu não tenho mais nada para falar com ele.
Ela se levantou para tirar a mesa, ele continuou ali sentado com aquela cara de peça de xadrez. Não precisa se incomodar, deixa que eu tiro. Mas ela sempre acaba tirando a mesa sozinha mesmo. Pelo menos pôs a louça na máquina, não precisava mais lavar tudo na pia. Fora isso, nada parecia ter mudado. Só constatei que o tempo havia passado quando percebi que meu pai tinha agora o mesmo cheiro do meu avô.
Ela me trouxe um chá sem que eu pedisse, e ficamos mais um pouco na sala. A essa época do ano, o frio ainda servia de pretexto para que as minhas roupas cobrissem os arranhões na nuca, os hematomas nos braços. Quando subi para o meu antigo quarto, dormi depressa, não sei se de cansaço ou se foi para não pensar em mais nada.

Eu tinha tentado aprender a ser humilde, a engolir os nãos que a vida te enfia goela abaixo, a lamber o chão dos palácios. Aprendi a me sentir desprezada-como-um-cão, e tudo bem, acordar, escovar os dentes, tomar café e continuar. Mas hoje realmente parecia tudo bem, ou ao menos que ia ficar.
Liguei o chuveiro e deixei aquela água toda toda cair em cima de mim e levar tudo tudo tudo embora. Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo... Eu olhava para a água que escorria pela minha barriga, aquela criança fugiu antes da hora porque entendeu melhor do que eu que aquilo não era vida, só pode. Eu mesma não a queria neste mundo, confesso. Conheceu socos e empurrões antes de qualquer outra coisa, e depois os gritos e as cadeiras indo ao chão e o por pouco não acorda os vizinhos. Pior do que ter um pai como o Caio, seria ela ter me obrigado a uma vida inteira presa a ele. A coitadinha já ia nascer culpada, de consciência pesada, não pode uma coisa dessas! Não foi culpa minha, mas é verdade que eu preferi que tenha sido assim, não aceito que seja feio dizer isso. Ela só veio para ir embora antes mesmo de vir, para me mostrar que eu podia ir embora também. Ela viu sem ver e sentiu sem dizer toda a humilhação, a raiva e o pranto. E desistiu. Ia ser menina...
Ainda enrolada na toalha, sentei na cama. À minha frente, o espelho na porta do armário me apontou a velha caixa guardada debaixo da minha cama de adolescente. Fotos de antigos amores, bilhetes assinados por outros cheiros, e dali saíam sorrisos desbotados e olhares mornos e abraços já tão distantes. E eu ali, dentro dessa caixa, no meio disso tudo, de um jeito que eu nunca mais tinha me visto. Vi a mim mesma dando uma risada em sépia, minha boca-de-sino se confundindo com as das amigas na volta, minha cintura fina segura pelo braço másculo que a rodeava e beijava meu ombro. Só então me dei conta: fazia tanto tempo que eu não me apaixonava que já sentia o coração entediado, mais parecia um escritório em dia de feriado.
Me encarei no espelho, eu hoje, as marcas da violência, a pele ainda jovem apesar de tudo. Não me importei que a toalha caísse e que eu ficasse ali exposta e úmida, o verso nu e cru à luz do dia seguinte. Me masturbei na frente do espelho com a certeza de que não precisava de mais ninguém.
Encontrei uma bicicleta na garagem e não hesitei em percorrer mais uma vez as pacatas ruas do meu velho Menino Deus, oferecendo os longos cabelos ao ar que meu corpo interrompia e modificava. O sol das 10 horas de um dia de semana me era reconfortante. Manhãs assim têm um não-sei-quê de recomeço que era exatamente o que eu precisava. Fui até a beira do Guaíba e sentei para fumar um cigarro. O vento, sem pressa, dançava com a fumaça, entretanto eu tinha os olhos fixos no azul profundo do céu de setembro. O sol nunca terá dono.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Do avião se vê

incontáveis estrelas pacíficas sobre o oceano, as luzes infinitas da Cidade do México, e a lua, sorriso do gato dando as boas-vindas. Marina no país das maravilhas.